Ando cansado de correr. Melhor, as pernas estão cansadas de correr. Eu não. A “mim” apetece-me... Equipo-me, saio, começo, mas as pernas nem sempre me acompanham! Às vezes parece mesmo que ficam em casa... Ontem era dia de 32km e lá vieram comigo, pelos vistos a contra-gosto pois insistiam a cada passo que não era dia para corridas. E eu teimava que era. E as pernas em birra: “nem pensar nisso”. E foi esta conversa de surdos da Cruz Quebrada ao Cais do Sodré, para trás até Alcântara... E ao fim de 15km parei, respirei fundo, pensei um minuto... e apanhei um táxi de volta! Ganhou o corpo. Como deve ser, quando a cabeça tem juízo.
Foi a melhor viagem de táxi de que me lembro! Brinquei com o taxista, incrédulo a ver dois tipos de calções entrarem-lhe pelo carro dentro às 6 da tarde: “Amigo, fica agora a conhecer uma nova classe de clientes... corredores cansados, a desistirem a meio do treino!”.
Por isso... hoje fui nadar!
E foi delicioso! Desde os 5-6 anos, então no fundo do velhinho Algés e Dafundo, que frequento piscinas. Mais tarde na piscina do antigo IND na Graça (nem sei se ainda existe). Mais tarde ainda novamente na piscina de 25m do Algés, depois de coberta. No Arizona nadava muitas vezes. Óptimas as piscinas ao ar livre das duas universidades... abertas quase o ano todo... boas memórias! Nunca fui bom nadador e continuo a não ser, mas de facto toda a vida nadei (e nunca antes tinha pensado nisto). E agora no Estádio Nacional, na magnífica piscina de 50m. Que hoje estava quase vazia...
Gosto do ritual de preparação no balneário. De vestir o fato de banho e nada mais... o corpo, quase despido, a sentir que vai ser posto à prova. Parece que libertar-se da roupa liberta também os músculos. Algum frio estimula os movimentos de aquecimento fora de água. A piscina muito azul, bonita, grande... Hoje estavam poucas pessoas a nadar e algumas pistas livres. Um luxo. De resto apenas o silêncio, pouco habitual pois há sempre aulas barulhentas e música de fundo. O som era por isso diferente. O ambiente quente, húmido, confortável, com a luz natural de um dia cinzento a penetrar no edifício. Tudo era diferente e especial hoje... Entrei na água, ajustei os óculos, mergulhei a cabeça já em desequilíbrio para a frente e empurrei a parede com as pernas, com força! Ao ondular debaixo de água uns bons segundos (sempre mágica a entrada num outro mundo) percebi logo que ia ser um bom dia de natação. É como os primeiros passos da corrida... Dá logo para perceber como vai ser o resto.
Fiz muitas piscinas em estilo livre... a deslizar... a mão bem à frente à procura de mais água para agarrar e puxar para lado nenhum. Assim foi até me doerem os ombros. Nadei também bruços, as costas fora de água a cada inspiração. A pernada forte, redonda... o silêncio na fase submersa. Ao contrário de ontem, o corpo colaborava, pedia mais, e por isso lá fiquei... livres até cansar, bruços para descansar. Só mais duas piscinas... a última para lá em bruços, calmamente... uma viragem vigorosa e o regresso num sprint em livres... que boa a sensação de sentir na cara a pequena onda feita pela cabeça a avançar na água!
À chegada ao fim da pista alguém me deu sinal que era hora de sair. O rapaz não disse uma palavra, apenas um sinal com as mãos como se soubesse que hoje se respeitava o silêncio. Fiz-lhe sinal que sim com a cabeça e ele foi-se embora. Tirei a touca e os óculos atirando-os para fora e saí da água num salto. Respirei fundo. E bem fundo se respira depois de 30 minutos a nadar! Calcei os chinelos, escorri a água da cara e do cabelo, olhei à volta e reparei que estava completamente sozinho. Ao caminhar para o balneário apeteceu-me saltar de novo para dentro de água e fazer de peixe mais um pouco... Notei que me apetecia brincar (já não me lembro da última vez...). Tomei banho, olhei-me ao espelho, vesti-me, desejei boa Páscoa à pobre senhora a trabalhar no feriado, saí e deixei o complexo da piscina para trás, 50 minutos de pois de ter entrado.
Moral de tudo isto...? Não há.
Dois dias, dois treinos para nenhuma meta importante. Pequenos rituais, pequenas decisões (hoje quase não fui nadar...), pequenos detalhes, pequenas recompensas (apetecia-me brincar...). Na verdade, pequenos nadas que fazem o dia-a-dia de quem corre, de quem nada, de quem faz desporto. Por vezes com amigos, como ontem. Por vezes sozinho, como hoje. Sempre na companhia do nosso corpo, este companheiro que, se o tratarmos bem, nos retribui em pequenas doses de prazer.
A nossa vida não é isto, é certo. Mas isto faz parte da nossa vida. E torna-a um bocadinho melhor. Se o sentido da vida é vivê-la, ele aqui está. Aos bocadinhos...
Quando respiramos fundo, cansados no fim do treino, é só isso que estamos a fazer. A respirar fundo! Ou respirar “a fundo”... Nada mais.
E assim sabemos que valeu a pena.
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